quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Kennedy e a preparação do golpe

O mais decisivo na preparação do golpe foi a atuação do governo norte-americano, através de sua central de inteligência, a CIA, e do embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, possivelmente o que mais interferiu na política interna brasileira de toda a história da diplomacia. A CIA, que atuava a partir de bases em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, articulava-se com os militares golpistas. Durante o governo de John Kennedy, eles despejaram muito dinheiro na campanha de desestabilização de Goulart, usando fachadas como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que entre outras atividades financiou candidatos da direita nas eleições de 1962, para governos dos Estados e para o Congresso. Foi um investimento fundamental para o sucesso do golpe em preparação, sobretudo no Rio Grande do Sul, onde se elegeu Ildo Meneghetti, cuja presença no governo estadual minou a resistência gaúcha em 1964.

Esses fatos, que por muito tempo os militares classificaram como calúnias, estão atualmente comprovados por documentos do governo dos Estados Unidos, abertos aos pesquisadores depois que venceu o prazo em que deveriam permanecer secretos. O que veio à luz inclui até mesmo gravações de conversas telefônicas entre o embaixador Lincoln Gordon e Kennedy, nas quais este deixa clara sua determinação em derrubar Jango. Para o presidente norte-americano, se o Brasil caísse “nas garras do comunismo” não seria uma nova Cuba no continente, “mas uma nova China”.

O estancieiro "comunista"

Vendo-se com os olhos de hoje é difícil compreender como tantas pessoas acreditaram que João Goulart desejasse realmente implantar um regime comunista no Brasil. Foi mais uma das tantas insanidades coletivas da época. Mesmo sem ter as coisas tão claras assim, eu já via o absurdo da situação e um dia apresentei a questão a meu pai. Ele não titubeou:
– Ah! Mas aí vai ser o comunismo dele. Ele é que vai ser dono de tudo!
Naquela altura da vida, morando na favela, meu pai não tinha nada a perder. Nem por isso deixava de temer comunismo.
A grande imprensa, que desde o final de 1963 jogara-se por inteiro na campanha anti-Jango, desenvolvia raciocínios aparentemente menos simplórios. Para não ter que explicar o paradoxo de um presidente estancieiro, dono de 65 mil cabeças de gado, querer implantar o comunismo no Brasil, inventara uma tal “República Sindicalista”. Jango, que sempre tivera apoio dos sindicatos dominados pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o antigo PTB (e agora contava também com os do PCB), estava levando o país para uma República Sindicalista, fosse lá o que isso quisesse dizer. Acrescentavam-se acusações de corrupção no governo para, no fim, República Sindicalista, comunismo e corrupção virar uma coisa só e assim serem servidas ao público, como prato principal do cardápio conservador. Havia mais lógica na explicação ingênua de meu pai. 

Os traidores dão nome às ruas

O golpe de 1964, pela forma como foi desfechado, parecia ter tudo para dar errado. As tropas que saíram de Minas Gerais em 31 de março, comandadas por um general fanfarrão, eram qualquer coisa menos uma força capaz de derrubar algum governo, de forma que só no dia seguinte, ou seja, no Dia da Mentira, ficou claro tratar-se de algo sério. Por isso, pelos anos seguintes, os que se colocavam contra a quartelada continuaram dando a ela o nome de “golpe do 1º de abril”, enquanto quem era a favor falava na “revolução democrática de 31 de março”.
O fato é que esse exército de Brancaleone foi avançando sem encontrar resistência. Enquanto isso, os comandos militares janguistas iam rapidamente entregando os pontos, coagidos pelos conspiradores, que haviam conseguido contaminar toda a estrutura militar.
Já se gastou muita tinta para explicar porque o governo João Goulart caiu como uma fruta podre, sem voz de comando, sem disparar um único tiro. Também não é novidade que os conspiradores não esperavam que tudo fosse tão fácil. Eles estavam preparados para conflagrar o país, contando com total apoio norte-americano, que chegaria à intervenção direta se fosse preciso.
De fato, documentação liberada pelo governo dos Estados Unidos e estudada nos últimos anos não deixa dúvida de que a chamada “Operação Brother Sam”, desfechada exatamente no 31 de março, tinha a intenção e os meios necessários para iniciar a invasão do Brasil, caso os golpistas necessitassem. Essa operação consistiu no deslocamento em direção ao litoral brasileiro de uma frota de guerra norte-americana com 14 navios, entre os quais um porta-aviões que poderia transportar armas nucleares e um navio de transporte de tropas com fuzileiros navais, os mariners, preparados para o desembarque. Levava gás lacrimogêneo para controle de multidões, 110 toneladas de armas e munições, esquadrilha de caça, helicópteros, aviões de transporte.
Enfim, mesmo começando com uma marcha caricatural, protagonizada pelo general Mourão Filho, o golpe nada tinha de blefe. Do ponto de vista do governo, o poderio do inimigo definia o cenário de uma guerra perdida, o que torna mais fácil compreender a paralisação de Jango e, por fim, sua decisão de se exilar.
Recentemente, passei com um amigo advogado pelo Minhocão, a via elevada de São Paulo que leva o nome do general Costa e Silva, e ouvi dele que no Brasil os traidores dão nome a ruas, viadutos, rodovias, praças. Ele exemplificou:
– Veja esse cara, o Costa e Silva, ele e os outros golpistas de 64 estavam perfeitamente articulados com a força inimiga enviada contra o Brasil, a Operação Brother Sam.
Meu amigo não se contentou com a observação genérica. Chegando em casa, abriu um exemplar do Código Penal Militar e me telefonou para acrescentar:

– Tudo o que os golpistas fizeram está aqui, no capítulo que tipifica os crimes de traição: atentar contra a soberania do Brasil, prestar informação ao inimigo, coagir comandantes, aliciar militares em favor do inimigo y otras cositas más.

Um ditador sem pescoço, outro sem cabeça

Costa e Silva havia assumido o Governo em março de 1967. Na mesma data, entrou em vigor a Constituição que Castello Branco fizera o Congresso aprovar, após mais algumas cassações de mandatos parlamentares. As principais medidas dos quatro Atos Institucionais baixados até então estavam incorporadas nessa nova Constituição: eleições indiretas, julgamento de civis pela Justiça Militar, eliminação quase completa do direito de greve... A ditadura se institucionalizava.
Jogador compulsivo, Costa e Silva não dispensava corridas de cavalo e era viciado em carteado. Pelo menos era o que se dizia dele. Contava-se que nos seus tempos de caserna vivia pendurado em dívidas de jogo. Mas, a partir de 1964, sua sorte mudara. Mesmo quando perdia, quem participava de suas rodadas de pôquer acabava “esquecendo-se” de descontar o cheque recebido dele. Em troca, muito empresário admitido em seu círculo íntimo fez excelentes negócios com o governo.
Era tido como um homem obtuso, o que ele próprio ajudava a comprovar dizendo que só lia palavras cruzadas. A partir do momento em que começou a ser apontado como sucessor de Castello, as piadas sobre ele não pararam mais. Uma delas: Costa e Silva teria confundido a placa “Em Obras”, mostrando-a a um visitante estrangeiro como a mais nova estatal brasileira, a “Emobras”. Outra dizia que “locomotiva vai para frente e apita, mas o Brasil vai de costa e silva”.
Embora tenha sido o mais ridicularizado, Costa e Silva não foi o único dos nossos ditadores objeto de piadas. Castello Branco, conhecido como “o presidente sem pescoço” por seu físico atarracado e cabeça que parecia sair direto dos ombros, protagonizava anedotas nas quais estava sempre atrapalhado com a gravata. Circulou em Porto Alegre que, na posse de Costa e Silva, alguém do círculo palaciano (talvez o próprio Castello) disse após a transmissão do cargo:
– Sai um presidente sem pescoço, entra um sem cabeça.

Castello Branco morreu num acidente aéreo quatro meses após deixar o cargo. Em Porto Alegre, fui para um bar comemorar com amigos, bebendo cachaça. Na Zona Sul do Rio, houve festa com champanhe. Costa e Silva não demorou muito a acompanhá-lo. Morreu em 1969, sem completar o mandato, mas dessa vez não houve festa: o país estava mergulhado no Ato Institucional nº 5. Havíamos perdido até o senso de humor.

Virgindade dá câncer

Em São Paulo, ganhou peso a ocupação de faculdades. A mais prolongada foi a da Filosofia da USP, que durou de junho a outubro e contou com o apoio de parte importante dos professores. Os estudantes acamparam no prédio da Rua Maria Antônia, transformado em república livre. Ali faziam as refeições, dormiam e organizavam atividades culturais, cursos abertos sobre marxismo, filosofia, história da arte, conferências de todo tipo. E debatiam a reforma universitária em comissões paritárias de estudantes e professores.
A Maria Antônia foi a mais completa expressão brasileira do espírito de 1968. Virou Meca de peregrinação para atores do Oficina e do Teatro de Arena, intelectuais, artistas e músicos. Improvisavam-se shows, espetáculos teatrais, performances. Era uma festa, na qual não faltavam festivais, exposições, cineclube. Centenas de estudantes de outras faculdades (e até de outros Estados) vinham participar daquela experiência. Nas paredes do prédio, uma frase pichada integrava-se ao clima geral de liberdade e contestação:
“Virgindade dá câncer”

José Dirceu, então presidente da UEE (União Estadual de Estudantes) praticamente se instalou na Maria Antônia, onde se mostrou muito ativo na “prevenção do câncer”. Entre os seus “casos” durante a ocupação o que mais deu o que falar envolveu uma moça chamada Heloísa, que na verdade era agente do DOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), a polícia política. Descoberta, ela foi obrigada a entregar a chave de seu apartamento e lá os estudantes encontraram cópias de relatórios e nomes de outros infiltrados. Depois, numa operação de propaganda, entregaram a moça ao seu pai, que veio do interior. No movimento estudantil, Heloísa ficou sendo conhecida como “Maçã Dourada”, seu suposto nome em código na operação que envolvia sexo e espionagem.

A guerra da Maria Antônia

 A ocupação da Faculdade de Filosofia, na Rua Maria Antônia, foi até o início de outubro de 1968, três meses após ter se iniciado. Tudo acabou em um grande conflito no qual os estudantes da USP tiveram que enfrentar o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e pessoal da vizinha Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi a chamada “Guerra da Maria Antônia”, que durou dois dias. Começou com insultos aos “subversivos” da USP, rapidamente evoluiu para pedradas e tijoladas de parte a parte e, depois, coquetéis molotov e tiros.
A polícia foi chamada pela reitora do Mackenzie, Esther de Figueiredo Ferraz, mas, em vez de apartar a briga, postou-se junto à Universidade Presbiteriana, formando uma barreira de proteção, enquanto a luta continuava do outro lado da rua. Dentro do Mackenzie, os laboratórios de química ficaram abertos ao CCC, que ali se abastecia de ácido para usar na batalha. Os alunos da Filosofia recuaram: não dava para continuar a luta com o CCC protegido pela polícia e o conflito arrefeceu.
No dia seguinte a guerra recomeçou, com violência ainda maior. O CCC passou a atacar a tiros os alunos da Filosofia e uma bala atingiu o estudante José Guimarães, que morreu. Os ocupantes abandonaram a Maria Antônia e em seguida saíram em passeata, com Dirceu à frente, a camisa ensanguentada do estudante assassinado nas mãos.
Sob o olhar impassível dos policiais, o prédio da Filosofia foi parcialmente incendiado por coquetéis molotov. A faculdade, expulsa daquela rua, nunca mais voltou. Seus alunos passaram anos acomodados em barracões improvisados na Cidade Universitária.

Quanto à reitora Esther de Figueiredo Ferraz, o prêmio por ter ajudado a liquidar com aquele “antro de subversão” seria entregue três anos depois. Virou secretária de Educação do governo paulista e mais tarde ministra da Educação.

Ditadura dentro da ditadura

Havia forças poderosas, aninhadas no coração do governo, querendo fechar de vez o regime, instaurar uma ditadura dentro da ditadura. O que faltava era o motivo, depois que o plano terrorista do brigadeiro Burnier dera com os burros n’água e que a prisão em massa no Congresso da UNE deixara as ruas calmas, sem passeatas.
 O “motivo” foi criado a partir de um discurso do deputado Márcio Moreira Alves, na tribuna da Câmara. Contumaz denunciante de torturas, Moreira Alves dessa vez se excedeu, propondo algo completamente inusitado como instrumento de luta política: uma “greve de sexo”. Ou, mais precisamente, propôs que fosse feito um “boicote” aos militares, dirigindo-se “às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e frequentam os jovens oficiais”.
O governo pediu licença à Câmara para processar o deputado atrevido. Esta, como era de se esperar, negou o pedido em votação dia 12 de dezembro. No dia seguinte veio o troco, sob o nome de Ato Institucional nº 5. O Congresso foi fechado, eliminou-se o habeas corpus para os processados pela Lei de Segurança Nacional, reabriu-se a temporada de cassações. Nossos bravos soldados estavam sob o grave risco de ficar sem sexo e contra tal atentado tornavam-se necessárias as mais drásticas medidas. Começavam aí os 10 anos de AI-5.

O fechamento total do regime foi saudado por uma parte da esquerda. As organizações militaristas viam no AI-5 o desmascaramento do “Estado burguês”, incapaz de se manter de pé sem truculência, incapaz de conviver até mesmo com um arremedo de democracia. Acabam-se as ilusões restando agora apenas o recurso às armas. Era a teoria do “quanto pior, melhor”. Foi necessário correr muito sangue até que minha geração se convencesse de que isso era uma insanidade, de que quanto pior, pior mesmo!